Com 91 anos já feitos, Maria da Luz pouco fala e já tem dificuldade em reconhecer a família. É pela voz embargada da filha, Maria de Lurdes, e do genro, Arménio Silva, que conhecemos a história desta tomarense que dedicou grande parte da sua vida, mais concretamente 56 anos, a cuidar e a zelar pela Capela de Nossa Senhora da Piedade. Inicialmente conhecida como Capela da Senhora do Monte, o templo está erguido num local com vista panorâmica sobre a cidade de Tomar.
Nascida no Carril, freguesia da Junceira, a 16 de Março de 1919, Maria da Luz foi trabalhar para Tomar com 11 anos, como empregada doméstica em casa de Augusto Silveira, homem influente na cidade. Tinha 25 anos quando foi convidada pelo pároco local, por intercessão do seu patrão e padrinho de casamento, para zelar pela capela Nossa Sra. da Piedade. Chegou a ganhar 75 escudos por mês (5 tostões por dia), subsídio que lhe foi retirado em 1962 por decisão do padre David, que guiava os destinos da paróquia à data. A única moeda de troca residia no facto de poder viver, sem pagar renda, numa habitação contígua ao templo. Ali casou e teve os seus três filhos (Aníbal, Henrique e Maria de Lurdes) que, por sua vez, também ali lhe deram alguns dos seus netos.
Inicialmente, a casa onde habitava não tinha luz nem água o que obrigava Maria da Luz a ir buscar água à fonte de São Gregório, subindo e descendo os 292 degraus com o cântaro à cabeça. Mais tarde pediu ao presidente da câmara que lhe mandasse encher uma cisterna até que, por fim, lá chegou a água canalizada. O telefone também foi colocado por sua conta e risco. “A minha mãe esteve 34 anos sem casa de banho e 24 anos sem electricidade ou água”, relata Maria de Lurdes, que fez as contas. “Se a capela tem água e luz deve-se à minha sogra que pagou do seu bolso”, ressalva Arménio Silva.
Maria da Luz arrancava as ervas daninhas que cresciam no adro, mudava as flores, lavava e passava as toalhas do altar, limpava o templo e abria e fechava a porta aos visitantes desde que o sol nascia até se pôr. Quase sempre de vassoura na mão, realizava as diversas tarefas com igual afinco. Várias vezes, pagava a alguém para que fossem cortar e desbastar os arbustos para que se conseguisse ver a capela, no monte, a partir da cidade. Ciosa das suas responsabilidades, diz a família que nunca teve direito a férias ou dias de folga. “E quando via alguém estranho a circundar os quintais vizinhos tocava o sino a avisar”, recorda ainda a filha.
Assalto deixa zeladora inconsolável
Maria da Luz trabalhou e viveu na Capela de Nossa Sra. da Piedade quase até aos 82 anos. As suas idas à cidade também eram escassas, apenas para ir ao médico ou às compras. O seu 81.º aniversário ainda chegou a ser celebrado junto à escadaria que todos os anos acolhe o Círio, como comprova uma fotografia onde se vê a idosa a soprar as velas do bolo nesse local.
Um ano antes um episódio triste dita a reviravolta da guardiã do templo. Situada num sítio isolado, a casa de Maria da Luz é assaltada, numa altura em que esta se encontrava a dormir uma sesta, tendo o ladrão levado as suas peças em ouro e todas as chaves, as da capela inclusive. Inconsolável, nunca conseguiu recuperar do trauma e o seu estado de saúde começou a agravar-se, passando a ficar recolhida em casa dos filhos. Actualmente reside na Murteira, freguesia da Madalena, na casa do filho Henrique. Tem sete netos e oito bisnetos.
A vida de Maria da Luz foi vivida sempre em prol da capela. Os filhos recordam que “para a tirar de lá foi muito difícil” e, até há bem pouco tempo, o pensamento de Maria da Luz incidia sempre e só na Nossa Senhora da Piedade. Por este motivo, mesmo debilitada, chegou a fugir da casa dos filhos em direcção ao templo. E quando lhe perguntavam onde ia, respondia sempre: “para o lugar onde pertenço”.
“A minha mãe foi esquecida”
A voz embarga-se sempre que Maria de Lurdes fala da Capela de Nossa Senhora da Piedade, local onde nasceu, cresceu, casou e teve os seus filhos. Em sua casa, na Palhavã, conserva dezenas de fotografias, quadros, pratos decorativos e até uma réplica em miniatura do monumento. Escreveu várias quadras em memória dos tempos que ali viveu e que não consegue ler em voz alta, sem que as lágrimas caiam.
Durante quatro ou cinco anos, ajudou a zelar pela capela e chegou a pedir ao Padre Borga para, juntamente com o marido, dar continuidade ao trabalho da sua mãe mas tal não foi possível, por diversas circunstâncias relacionadas com a Comissão de Culto de Nossa Senhora da Piedade. “A minha mãe foi esquecida. Depois de tudo o que fez, são poucos os que se lembram dela”, aponta com alguma mágoa na voz. Salientam, no entanto, que na última festa do Círio de Nossa Senhora da Piedade, o pároco Frutuoso Matias pediu ao casal que a levassem lá a cima, intenção que não foi possível realizar devido ao debilitado estado de saúde de Maria da Luz.
Por Elsa Ribeiro Gonçalves
In: "O Mirante"
Estou sem palavras....
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